Outras Palavras para uma Psicologia da Diferença
Keywords:
Psicologia da Diferença, Psicologia, Outras PalavrasAbstract
Este vocabulário é uma construção colaborativa de um pequeno grupo de pesquisa vinculado à Universidade Católica de Brasília. Desde 2010, o grupo se reúne em torno de projetos de pesquisa e intervenção que têm em comum as atuações com populações vulneráveis. O projeto “Outras Palavras” dá continuidade a este longo percurso de pesquisas e intervenções, que abriga um sem-número de monografias, dissertações e teses. Cada estudante que passou pelo grupo carrega consigo o aprendizado de sua autoria, dos encontros, das intervenções e supervisões, dos cursos e leituras compartilhadas; dos eventos próprios e externos, das conferências, do processo de escrita, das oficinas, das colaborações com profissionais externos, palestras. Ao mesmo tempo em que o percurso funcionou e funciona em conjunto com o Ensino e ações de cunho extensionista, deixa marcas em todas as pessoas que tiveram seu caminho cruzado com este. Efeitos dos quais nunca se saberá completamente. Deste percurso, cumpre que destaquemos pelo menos dois marcos. O primeiro data de 2014, quando realizamos uma série de intervenções aliançadas com as teorias feministas e com foco na violência de gênero. Essa experiência nos levou a novas reflexões sobre o papel da Psicologia no enfrentamento de distintas violências, considerando que o sexismo, o racismo, a pobreza, entre outras categorias, estão profundamente enraizados em nossa sociedade e organizam as discriminações. Estas experimentações em torno da violência de gênero (PEREIRA; TIMM, 2015; PEREIRA et al, 2019) gestaram o projeto que tem neste vocabulário um produto. E este é o segundo marco que convém destacar: o vocabulário, a ser apresentado a seguir, como um limiar atravessado no percurso do grupo. Sua construção foi fruto de uma intensa colaboração do grupo, em sua versão mais numerosa, multidisciplinar e maturada. Pela simplicidade intencional com que fora escrito, o vocabulário auxilia que o próprio grupo local comece a se afirmar deste campo – uma vez que a pergunta pela abordagem é recorrente. Auxilia também outras profissionais, da psicologia ou não, a terem sua prática, percepção e produção fora do paradigma da representação. Isto significa retirar o foco da norma para colocá-lo sobre a diferença que é percebida em meio à repetição. A Psicologia da Diferença consiste na criação de um campo conceitual que reúne algumas teorias e ações psicológicas cuja principal característica é a de exercer uma função crítica aos sistemas hegemônicos de significação e poder, especialmente no tocante ao pensamento sobre as diversas vulnerabilidades humanas. Mas “conceitual” não é sinônimo de “abstrato”: um conceito tem relações concretas com as vivências, com o mundo, com a “realidade”. Assim, o campo conceitual da Psicologia da Diferença consiste também em um campo de práticas críticas. Como dito anteriormente, este vocabulário marca um importante traço nesse processo sempre aberto de constituição. Nele estão colocadas e, algumas vezes, exemplificadas as principais definições pelas quais buscamos fazer consistir este campo. Em cada verbete, as autorias se diferenciam da sua abordagem de origem, seja ela humanista, gestaltista, lacaniana, esquizoanalista, e da sua inserção na prática, como na docência e nas artes plásticas, num movimento de aproximação da Psicologia da Diferença. Em diferentes medidas, cada uma das “outras palavras” é uma experimentação. Cada verbete se faz acompanhado de uma experimentação artística. Obras construídas pelo próprio grupo no âmbito das vivências concretas da pesquisa Outras Palavras, buscando desta forma transitar entre conceitos a partir de relações concretas com o mundo, com a realidade. Assim, as peças resultantes da experimentação formam duas séries distintas mas conectáveis: uma de rostos e outra de paisagens, duas explorações singulares no campo da criação plástica. A série de rostos pertence inicialmente à monografia “Mulheres Cansadas: (des) territorialização do corpo” (WARSZAWSKI, 2019) e a série de paisagens foi criada no contexto de experimentações com o desenho de paisagem na docência no ensino superior, e se trata de parte de tese abrigada pela pesquisa. Aqui, as séries de verbetes, rostos e paisagens estão experimentalmente bricoladas, de modo a tencionar criar outra coisa à perspectiva de quem lê e permitindo uma modulação da própria leitura a partir de atravessamentos; vazamentos que a arte permite (e aqui escolhemos a arte visual, mas poderia ser musical ou outra qualquer); tratando de perceber diferentes formas de existências como potência criadora e articulando ética e estética. Entendemos que produzir um texto ou uma pintura são experiências corporais ativas e implicam em ato de elaboração de sínteses, uma desconstrução sistemática e permanente de rearticulação de ideias. Então, a experimentação artística tornou-se para nós uma ferramenta de investigação das próprias formas de subjetivação capaz de produzir afetos nos corpos operantes. Na série textual, buscamos uma linguagem acessível a estudantes de graduação e profissionais interessades. Na construção e editoração dos verbetes e do glossário, foi necessário um esforço de tradução do conjunto de filosofias e teorias trabalhadas e pouco exploradas para possibilitar um entendimento introdutório, mas já operacional. Tal esforço conjunto envolveu a conjugação de simplicidade (para iniciantes) e certo rigor. Os verbetes respondem, pois, à necessidade de “instrumentalizar”, referenciar uma prática psicológica e clínica, permitir modular a ação e atuação de quem lê. Ao mesmo tempo sem perder o que os conceitos têm de mais potentes, subversivos, adequados em suas filosofias de origem. O rigor, portanto, não diz de uma adequação ao Gosto1 de colegas de campos vizinhos ou de estudioses2 das mesmas obras e autorias nas quais nos referenciamos; o rigor diz de um cuidado. Ou seja, para que o esforço de comunicação e tradução não traia aquilo que os pensamentos têm de mais potente em relação ao trágico dos dramas que enfrentamos na clínica e fora dela; aquilo de mais afirmativo do que a ordem constituída nega; e aquilo que tem de mais feliz ao gosto de modos de vida por criar. Instalamo-nos na contracorrente das configurações psicológicas normativas, excludentes e inibidoras da criação de novas formas de vida e novas significações, assim como de um modelo de produção do sujeito humano. Trata-se, pois, de reconhecer diferentes formas de existência ocultadas no processo de positivação das significações hegemônicas. Na perspectiva da diferença, as significações ocultas se revelam como potências criadoras de sentidos emancipadores. Então, a Psicologia da Diferença, por meio também deste vocabulário, torna-se um programa que resulta na problematização. E o faz de maneira interdisciplinar para desenhar a desejada articulação entre psicologia, ética e política. Reúne o fundamental das contribuições de vários pensadores, dentre os quais, Espinosa, que se destaca como eixo em torno do qual se articulam os cruzamentos teóricos realizados. A nossa escuta é mediada pelo campo conceitual ora esboçado. Por essa mediação, é sensível às múltiplas significações que surgem na diversidade de violências que tentam bloquear o surgimento de vidas dissidentes, termo que usamos para designar as vidas chamadas vulneráveis e que assim se tornam por força de estruturas excludentes. Em suma, a prática desse programa ético e político é um exercício de alteridade radical. Que os verbetes funcionem no sentido de aumentar a potência das atuações de cada uma, acoplando-se a outras práticas, outras teorias, outras percepções e atuações, mas também as diferenciando em favor de modos de vida cuja consistência se estabeleça por nossos desejos.
Ondina Pena Pereira
Argus Setembrino
Carla Freitas Pacheco Pereira
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